Conheça o cearense que ganhou o prêmio Educador Nota 10, da Fundação Victor Civita. Sem recursos, usou a criatividade para incentivar o gosto dos seus alunos da 8ª série pela leitura e o prazer da escrita
O professor Antonio Oziêlton de Brito Sousa, 26, ganhou prêmio importante para educadores, o Educador Nota 10, da Fundação Victor Civita, porque soube conduzir seus alunos pela mão. Nada de empurrar goela abaixo uma maçaroca, quem sabe, enfadonha e descontextualizada da realidade dos pupilos. Ou seja, deixou Camilo Castelo Branco, felizmente, para a próxima.
Nada também de livro didático com soluções longínquas e pouco criativas.
Usou-se dos recursos de que dispunha para vencer as trincheiras: filmes, caricatura, internet, memórias. A leitura e a escrita, antes árduas tarefas, foram aos poucos se tornando algo palpável, possível, viável para alunos do oitavo ano, na faixa etária de 13 anos, da Escola de Ensino Fundamental Odilon de Souza Brilhante, na cidade de Ocara. Em verdade, no distrito de Curupira, a cerca de 104 quilômetros de Fortaleza.
Ao ser o único do Nordeste escolhido na categoria Língua Portuguesa e levar para casa R$ 15 mil, outros R$ 10 mil para a escola, além de troféu, Oziêlton confirma o que já era evidente: só mesmo professores dedicados ao que fazem e inventivos podem alterar o status quo educacional brasileiro – que, segundo ele, tem melhorado nos últimos anos, mas ainda está bem longe do ideal.
Nesta entrevista, ele explica em que consiste o projeto “Memórias todo mundo tem” que, junto com outros dez, convenceu os jurados contra quase três mil, mostra que a língua portuguesa não é peça de museu como querem muitos gramáticos e avalia que parar no tempo seria a morte didática para qualquer professor.
O POVO - Como começou seu gosto pela palavra escrita?
Antonio Oziêlton - O meu primeiro contato com a leitura foi antes mesmo de eu entrar na escola. Minha mãe se preocupava muito e me colocou para estudar com professora particular. Na verdade, era uma prima minha que dava aula para as crianças da comunidade e eu estudava com ela. Então, lia muito histórias em quadrinhos das coleções que ela tinha. Mesmo sem saber as palavras, já lia imagens.
OP – Seus pais sempre o incentivavam a estudar?
Oziêlton – Eles sempre me incentivaram – principalmente a minha mãe. Ela sentia só ter podido estudar até a quinta série. Por isso se preocupava em dar para nós o que não teve oportunidade de receber.
OP – Como foi sua infância em relação aos estudos?
Oziêlton – Nós morávamos no interior de Ibicuitinga, numa localidade chamada Extrema, onde não havia escola para todos os anos da vida regular, apenas uma escolinha multisseriada. Os alunos da primeira, segunda e terceira série estudavam todos juntos. Caso quisesse poderia repetir os anos, mas não avançava. As minhas irmãs repetiram duas vezes. Quando comecei a estudar, não havia mais escola para elas. Eu só tinha quatro anos nessa época e não enfrentei esse problema. Meus pais, Oziel e Elza, que eram agricultores, vieram embora para o distrito de Curupira, na cidade de Ocara, onde eu moro até hoje, para que eu e minhas três irmãs pudéssemos estudar. O único que conseguiu ser professor fui eu, o mais novo, até pelo fato de ter tido escolarização mais regular do que minhas irmãs.
OP – Como e quando decidiu que queria ser professor?
Oziêlton – Percebi que tinha essa vocação, essa predisposição, quando estava na sétima série. De certa forma eu gostava de liderar, de estar à frente das coisas. E o professor tem o poder de liderar, conduzir e guiar as pessoas em caminhos que as conduzam à aprendizagem.
OP – Em quais aspectos o senhor acredita que foi transformado pela educação que recebeu?
Oziêlton – A educação que recebi possibilitou que eu saísse de um processo de alienação e passasse a encarar a realidade de uma forma mais crítica; eu não precisaria aceitar as coisas e poderia intervir para modificar o que existe.
OP – Esse pensamento estava dentro do projeto que ganhou o prêmio da Fundação Victor Civita?
Oziêlton – Sim. A primeira coisa que percebi foi a necessidade de uma intervenção sistematizada na realidade educacional. Nós enfrentamos muito na escola pública um ciclo em que alunos passam anos estudando, mas chegam, ao final do Ensino Fundamental e Médio, sem o domínio esperado da leitura e da escrita. É preciso fazer alguma coisa e mudar essa realidade. Passei a diagnosticar os reais problemas que impediam que eles aprendessem e construir aulas para atender às necessidades específicas dessa turma.
OP – O que encontrou nesse diagnóstico?
Oziêlton – A maioria dos alunos era filho de agricultores que, na sua maior parte, eram analfabetos ou analfabetos funcionais. O único contato com leitura e escrita de maneira sistematizada, os modelos de letramento formais eram apenas na escola. Os pais dos meus alunos não tinham tanto a preocupação de formar gosto pela leitura. Depois notei que os estudantes estavam com nível de leitura muito literal, muito superficial. Não percebiam nada nas entrelinhas. Raramente faziam interpretação crítica. Além disso, tinham dificuldade de saber, por exemplo, onde utilizar letra maiúscula. Não sabiam conjugar os verbos nem paragrafar o texto. Depois do diagnóstico com nível de leitura e escrita de cada um, fiz um relatório para poder acompanhá-los.
OP – E que ações o senhor adotou em seguida?
Oziêlton – Ter um livro didático não era possível. As atividades propostas no livro não surtiam efeito na aprendizagem. Então, optei por trabalhar com memórias. Todos nós temos memórias de alguém de que gostamos. Por que não trabalhar as lembranças daqueles que foram os melhores professores deles? Propus esse desafio à turma. O livro didático vai servir apenas como consulta quando tivermos dúvida. Eles ficaram felizes, porque não ia ser só o livro dentro da sala. Construí uma sequência didática com seis módulos.
OP – Em que consistiram esses módulos?
Oziêlton – No primeiro módulo, como eles ainda eram insipientes na leitura e na escrita, optei por trabalhar com imagens. A partir de um filme, construímos listas com características que fazem um professor inesquecível. Vimos memória como lembrança de alguém e como gênero literário. Fiz isso para questões gramaticais e linguísticas tivessem significado. Usei também listas com nomes dos professores para trabalhar letra maiúscula. No segundo módulo, utilizei texto do (escritor paulistano) Marcos Rey falando de um professor inesquecível para que a turma pudesse ler, compreender e analisar textos de memórias. Já haviam feito leitura por imagens no primeiro, agora estavam mais preparados para o contato com texto escrito. Depois de muita troca de ideias, nós criamos uma caricatura com quadrinhos onde escreviam algo sobre o professor para que não fosse uma produção descontextualizada. Percebi que eles estavam sempre muito preocupados, porque trabalhavam a linguagem para alguém que exigia uma certa formalidade. No terceiro módulo, decidi trabalhar textos diversificados, mas sempre com memórias literárias. Fizemos roda de leitura, nos dividimos em grupo. Convidamos também uma funcionária da biblioteca que contou suas memórias dos tempos de infância. Eles escreveram essas memórias da funcionária e reapresentaram para a turma. Ao final, tínhamos cinco textos produzidos coletivamente. Desses textos, analisávamos problemas de coesão e coerência. No quarto módulo, fomos à biblioteca da escola. Lá convidamos uma aluna para fazer leitura em voz alta. Eles ficaram à vontade para escolher outros textos. Fizemos uma tarde inteira de leitura. Então, fiz um trato com a turma: em todas as aulas de Português, eles podiam levar livros da escolha deles para ler com a família. No laboratório de informática, puderam conhecer sobre os autores lidos. Buscaram também outros textos de memórias que não havia na sala de leitura. Montamos um painel com autores. Depois, pegamos os materiais lidos e fizemos estudos comparados com aquelas produções iniciais. O que está diferente no nosso texto para o texto do autor? O que encontraram foram os tempos verbais e os pronomes de maneira inadequada. Fizemos um roteiro para a produção final. Iniciamos o quinto módulo com leitura de um texto de Fernando Sabino. Voltamos esse texto à realidade dos alunos. Fizemos uma dramatização em sala. Então, recuperando a caricatura e o roteiro provisório, começaram a produção final, um texto de memórias homenageando professores inesquecíveis. Estudamos aqui pontuação, que era uma grande dificuldade de toda a turma. No último módulo, reescrevemos a produção final. Primeiro uma reescrita coletiva em que os alunos indicavam o que poderia ser melhorado no texto do colega. Priorizamos separação silábica, parágrafo. Depois fomos à reescrita individual. Construí uma pauta aluno por aluno do que podia ser melhorado. Depois passamos à correção ortográfica.
OP – E o que foi feito com essas produções?
Oziêlton – Produzimos uma coletânea com os textos dos alunos. Fizemos até concurso para escolher as capas. Publicamos dois volumes na própria escola. Houve um evento de lançamento. Eles apresentaram as produções para os professores que estavam presentes. Foi muito emocionante. Alguns alunos nunca haviam lido nada em voz alta. A partir desse intenso processo de interação social, pudemos ver o aluno fazendo leitura de um texto que ele mesmo produziu. Todos os professores se mostraram bastante surpresos, além de emocionados.
OP – Nesse processo, qual você acha que foi a maior conquista?
Oziêlton – Sempre digo que eles conseguiram chegar ao final do ano e ter uma vivência do processo de leitura e escrita contextualizadas que fez com que eles pudessem se tornar autores das próprias memórias educacionais. Eu me emociono sempre que falo disso.
OP - Quais foram os seus professores inesquecíveis?
Oziêlton – Foram duas professoras. Uma do Ensino Fundamental e outra da Faculdade. A primeira foi a professora Lucilene. Ela lecionu para mim muitos anos e fez que eu me apaixonasse pela leitura. Essa foi a grande contribuição dela. A outra foi a doutora Claudiana Nogueira Alencar, que me fez perceber a importância do uso da linguagem de maneira contextualizada. Para trabalhar a linguagem, é preciso fazer isso de forma viva, dinâmica, contextualizada. A aprendizagem só vai acontecer se houver interação social.
OP – A universidade e a realidade estão desconectadas uma da outra? Como o senhor avalia a formação universitária do professor?
Oziêlton – Defendo que as teorias linguísticas e literárias vêm contribuindo para a prática pedagógica. Temos avanços significativos nos estudos da linguagem. Tudo o que eu construí em sala foi baseado nos estudos que fiz na Universidade. Se houver formação universitária de qualidade, haverá bastante impacto na aprendizagem dos alunos.
OP – Como o senhor analisa o ensino de Português no Brasil? Que caminhos ele segue? Quais deveria seguir?
Oziêlton – Percebo um ensino descontextualizado, pautado no que está posto no livro didático. Os alunos têm uma versão a esse tipo de ensino. Eles não se identificam com essas metodologias tradicionais. Acaba gerando indisciplina, e a aprendizagem tem uma queda. O ensino já melhorou, mas ainda precisa dar um salto de qualidade: precisa considerar o contexto em que os alunos estão inseridos.
OP – A leitura obrigatória necessariamente afasta o leitor iniciante?
Oziêlton – Se o aluno não for um leitor preparado, a leitura obrigatória vai trazer aversão. Colocar livro e pedir para fazer fichamento ou ficha de leitura extensa, quando não tem domínio consistente do gênero e da leitura, isso vai fazer com que ele se afaste do mundo da leitura e nunca crie um gosto. Depois que os alunos têm prazer em leituras diversas é que será possível um trabalho voltado para leituras mais complexas.
OP – Que outras iniciativas há no Ceará de incentivo à leitura e escrita que valem a pena ser mencionadas?
Oziêlton – Aqui no Ceará temos o PAIC (Programa de Alfabetização na Idade Certa). Os alunos que foram alfabetizados no PAIC têm contato com leitura e escrita desde as séries iniciais. Quando chegam no Ensino Fundamental 2, já estão bem preparados para leitura e escrita mais complexas. No entanto, estudantes que frequentaram o Ensino Fundamental 1 antes de ser implementado o PAIC não tiveram contato sistematizado com leitura e por isso não conseguem fazer leituras mais aprofundadas por falta de base sólida.
OP – A solução seria seguir nesse caminho?
Oziêlton – Sim. A solução é intensificar políticas públicas sistematizadas que façam os alunos vivenciarem leitura e escrita desde as séries iniciais até o Ensino Médio. Antes, no Ceará, não havia nenhuma política que fortalecesse esse processo. A partir de 2007, as escolas passaram a ter bibliotecas. Mas, para a demanda de leitores que nós temos – porque agora alunos estão lendo mais nas escolas –, os livros que chegam ainda são poucos.
OP – A língua portuguesa está correndo risco e precisa ser preservada, como acreditam muitos, ou está, ao contrário, cada vez mais viva e múltipla?
Oziêlton – Precisamos entender que a língua é heterogênea. Nós podemos vivenciar isso no dia a dia. Temos vários falares em todo o Brasil que fazem da língua portuguesa muito rica. Na escola, precisamos encontrar meios para respeitar os vários falares; os alunos precisam ter o domínio desde uma linguagem menos formal até o domínio de uma linguagem mais formal, sabendo utilizar a língua de acordo com o contexto social em que estiverem inseridos. Precisam de competência comunicativa, adequando a linguagem aos diversos contextos sociais da sociedade contemporânea. Para mim, a língua é algo vivo, dinâmico, que muda.
OP – Depois de incentivada a leitura, acabou o trabalho? Ou ainda há o que fazer? Qual seria o próximo passo, então?
Oziêlton – O aluno da escola pública em geral é de classes baixas e tem dificuldades financeiras. A aquisição de livros não é prioridade na vida de quem é pobre. Além de ampliar biblioteca, precisamos de uma política pública no sentido de tornar o livro mais acessível para as pessoas. Se pensarmos bem, a leitura é um bem cultural que ainda custa muito caro. Nós que somos pobres, eu também me incluo nisso, temos dificuldade de comprar livros.
OP – O livro digital poderá democratizar a leitura e fisgar mais o interesse das pessoas?
Oziêlton – Eu sou bastante otimista. Mas acho que isso só vai acontecer daqui a algum tempo. Infelizmente, em muitos lugares do Brasil, ainda não há acesso à rede. Na nossa escola, temos dez computadores para 460 alunos. E o contato que muitos deles têm é apenas na escola. A questão do livro digital é promissor, mas só vai abranger todo o Brasil quando o acesso à internet for ampliado.
OP – Como a visão de mundo desses alunos se alterou diante dessas aulas?
Oziêlton – Os alunos que não têm contato com leitura e escrita têm uma visão muito restrita de tudo. Muitos alunos sempre falavam: “Eu não vou ler, porque não entendo nada”; “não vou escrever, porque não gosto de texto”. Quando concluímos o projeto, vários alunos passaram a ter posicionamentos diferentes sobre leitura e sobre o mundo. Muitos entenderam que o processo de leitura e escrita está no nosso cotidiano. Lemos e escrevemos sobre o mundo a todo instante. O problema é que às vezes existem algumas práticas escolares que afastam os alunos dessa naturalidade. Hoje eles entendem que são capazes de escrever e reescrever, veem leitura como algo que é construído; não é só ação de profissionais, mas algo que deve e pode estar presente no cotidiano de todas as pessoas. A partir da leitura e da escrita vão vivenciar um mundo que não fazia parte da vida deles.
Fonte: O POVO ONLINE
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